quinta-feira, 20 de novembro de 2008

A vida em Kaza

A região do Vale do Spiti e do Vale Pin faz divisa com o Tibet. Há anos atrás, a área fazia parte do Tibet ocidental. Mas com os conflitos entre a Índia e a China, a região acabou ficando sob território indiano. Até pouco tempo atrás, poucas pessoas de fora vinham visitar e conhecer a região. O turismo começou a se desenvolver há uns 10 anos. Hoje existem vários pequenos hotéis, guesthouses e homestays, esses surgiram nos últimos 3 anos. A paisagem típica da região é o vale com o riozinho de águas claras e geladas passando no fundo do vale, montanhas marrons de areia e pedra com neve no topo, algumas áreas planas preparadas para cultivo agrícola e vilas distanciadas com casas típicas. Na região existem duas estações do ano predominantes, o inverno e o verão, que são muito diferentes entre si. No “verão”, que dura do fim de abril a outubro, todos trabalham o tempo todo e muito, tanto nos campos, como no turismo e nas construções. O verão é a época em que as coisas devem ser feitas, em que se deve ganhar mais dinheiro. Já no inverno, ninguém trabalha. E ainda, durante os três meses mais frios, dezembro, janeiro e fevereiro, eles mal saem de casa. O inverno é tempo de festa... sempre há casamentos ou festas de aniversário. Então eles se juntam, cantam, dançam e bebem a noite inteira. Só assim mesmo para agüentar o frio congelante sem uma boa infra-estrutura. Pude entender muito sobre a região com a família que me recebeu lá. Moravam o pai (Neta Ji) a mãe e o filho mais novo, que será monge. Toda hora que eu chegava eles faziam um chá quente pra mim. Muito bom, porque sempre chegava com frio! Ficando lá com eles eu tive um contato muito próximo com os verdadeiros costumes da região, muito diferente do contato que tive em Mandla, onde o pessoal da ONG me “protegia” um pouco do contato com a realidade local. De acordo com as tradições budistas, o segundo filho homem deve ser “doado” para o monastério para se monge. Alguns gostam da idéia, outros nem tanto. Algumas famílias mandam o filho logo quando ele é novo, outras mandam quando o menino acaba os estudos primários. Mas de qualquer forma, se você for o segundo filho homem, você vai pro monastério. Talvez essa regra tenha surgido em épocas de dificuldades para os monastérios, onde poucas pessoas queriam virar monges... não sei.

domingo, 9 de novembro de 2008

Chegando em Kaza

O Krishna me convidou para ficar no government flat (umas casas que têm lá para os funcionários públicos). Fiquei meio receoso, mas o motorista falou que era muito bom. Resolvi arriscar e incomodar ele um pouco.

Mas antes fomos jantar num dos únicos, senão o único, restaurante aberto lá àquela hora (8 da noite). O motorista comprou uma garrafa de rum e sentamos no restaurante. Era um sábado e o restaurante estava lotado, só pessoal local. Fui nesse restaurante mais algumas vezes... um dia até bebemos green label lá (indiano lógico)!

Fiquei muito incomodado com o tanto que o pessoal estava fumando e bebendo. Achei aquilo muito estranho e estranhei um povo budista fazendo isso dessa forma. Depois vi que não são todos assim e que a maioria dos “beberrões” de “bar” das vilas são os motoristas de táxi, o que é mais estranho ainda. Eles ficam muito tempo longe de casa e essa é a diversão deles durante a noite.

Até na hora de beber eles são religiosos, antes de começar eles molham o dedo com a bebida e jogam um pouco três vezes para deus, segundo eles!

As outras pessoas se divertem também nas festas de aniversário e casamento que acontecem quase toda semana durante o inverno, bebem até cair e muitos dormem no local da festa (é muito frio e perigoso voltar pra casa de madrugada, uma vez acharam um bêbado congelado na neve alguns dias após uma festa...)

Comecei a pensar porque eu achei aquilo estranho, se em vários lugares da Índia o pessoal está bebendo mais e fumando mais. Quando a gente pensa num projeto social para uma área, muitas vezes a gente pensa num trabalho “bonito” que está ajudando pessoas necessitadas e tal... Mas às vezes a gente esquece que essas pessoas também têm uma vida social em que desempenham um papel. E com a crescente ocidentalização, as pessoas começam a se abrir mais para hábitos relacionados a bebida e a sexo, e como os caras conversam de sexo... e ficam trocando fotos de atrizes no celular, hahaha...

Pensando mais um pouco... achar que essas pessoas não teriam essa “vida social” é o mesmo que achar que você vai mandar seu filho estudar fora e ele vai só estudar, não vai encher a cara com os amigos de vez em quando e matar aula...

Enfim fomos para o tal do government flat... Parece uma quitinete, com um quarto, uma cozinha e um banheiro. Dureza ficar com mais dois cuecas indiano num dessa hein... mas, para o meu alívio, eu ficaria sozinho naquele flat. O pior é que estava bem frio... mas tinha água quente, vejam abaixo o sistema de aquecimento - só ligar na tomada e esperar uma hora!

Alguns indianos gostam de agradar mesmo os estrangeiros e também ficar juntos, falarem que são amigos... o cara chegou a ligar pro melhor amigo dele e pedir pra eu conversar com o cara, hahahaha...

Bom, fiquei lá por duas noites e me mudei para uma guesthouse “casa de família” (homestay). No homestay você fica na casa de alguma família local morando como hóspede por algum tempo. É muito bom para conhecer mais sobre os costumes locais.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Manali-Kaza

A viagem seria pelo vale de Kinnour, 2 dias de viagem para percorrer os 600km que separam Manali de Kaza por esse caminho. O caminho mais curto (Rohtang Pass) levaria não mais do que 9 horas para percorrer 200km, se não estivesse com muita neve numa parte do caminho.

Acordei as 4h da manhã para chegar no local combinado antes das 5h e assim sairmos às 5h, o que não aconteceu. O pessoal foi acordando e se ajeitando e acabamos saindo as 7h30... Como preferiria dormir essas 2h30 a mais naquele frio que estava. Mas tudo bem, “indian time” novamente.

Tentei não pensar nisso, tomei uns dois chás enquanto esperava e relaxei. Já fui criando um monte de expectativas de ir conversando com o pessoal local, aprender algumas palavras do idioma budista que eles falam e especular bastante sobre a vida deles. Fiquei animado. Acabei indo na frente com um cara não local, funcionário do governo, e que quase não falava inglês. Fiquei desanimado.

Os dois caras que foram na frente comigo foram o funcionário público Krishna que trabalha na vila nos 5 meses que ninguém mais trabalha (nenhuma pessoa local trabalha em Spiti no inverno) e o motorista Akash, que meio bobo mas é bonzinho. Conversamos um pouco, mas logo já não tinha o que conversar...

Após o primeiro dia de viagem iríamos dormir em Rampur, uma cidadezinha que não tem nada além de um castelo de um imperador dos anos 1920 e alguma coisa... Bem recente! O imperador ainda existe, mas não vive lá mais. A cidade então virou apenas passagem, e estava bem cheia naquele dia... ninguém soube me dizer porque. Começamos a procurar um lugar para ficar, mas eles estavam muito preocupados comigo e não podiam gastar muito, nem eu queria. Num sei porque esses indianos acham que dá pra dormir três cuecas numa cama de casal, mas pra mim é impossível... então eu só queria uma cama pra mim! Os caras ficaram enrolando e não estavam conseguindo nada, entrei na primeira biboca que encontrei que parecia um albergue de bêbado e falei: ficamos aqui, tudo bem? O lugar era sinistro, mas era barato o suficiente e eu tinha minha própria cama.

Dormi tranqüilo, mesmo que sem banho. No outro dia o baguá do motorista acordou atrasado e deixou todo mundo esperando. Eu quase me ferrei nessa, porque eu precisaria tirar uma permissão numa outra cidade no caminho para passar numa área considerada de risco, na fronteira com a China e isso demoraria umas 2h. Como já estávamos atrasados eles sugeriram me deixar pra trás e depois eu conseguiria a permissão e continuaria a viagem... quanta raiva do motorista nessa hora! Eu bati o pé lá e também lembrei eles de que o governo não dá permissão a menos que você esteja em grupos de pelo menos 4 pessoas. Um monge meio influente que estava junto cansou da discussão e resolveu – falou que eu iria sem a permissão e ele assumia a bronca, caso necessário. Passaríamos nas duas barreiras comigo “infiltrado” no meio dos locais. Fiquei um pouco com medo, mas não tinha como dar errado, éramos em muitos carros com população local e a época de turismo já estava acabando. Foi assim que passei pelas barreiras sem permissão. Imagino que se não fosse dessa forma talvez tivesse levado pelo menos mais alguns dias pra chegar lá.

Passamos primeiro em Tabo, onde logo vi dois monastérios. O novo foi construído há poucos anos e é bem colorido e dourado. O velho, considerado o mais antigo da Índia ainda em suas condições originais, tem mais de mil anos e é bem marrom. Foi meu primeiro contato com esse mundo budista. Também notei algumas guest houses (hotéis mais baratos) por lá.

Seguimos para Kaza, onde chegamos a noite. O frio estava incomodando bastante, mas eu estava com muitas roupas e já tinha lugar pra ficar, tranqüilo...